A vida única em si mesma
Excertos de Roberto Pla, Evangelho de Tomé
Os evangelhos distinguem às vezes duas ordens de vida, mortal e eterna, mas esta distinção parecem fazê-la unicamente para efeito de simplificação expressiva, pois uma análise algo mais profundo nos revela que em realidade só encontram uma classe de vida, a vida eterna, que é própria de Deus enquanto Ser eterno, e de todo o que participa em seu Reino.
Quer isto dizer que para efeitos de estudo testamentário, devemos isolar e contemplar por separado o princípio de vida, tão entranhado em certo modo com a consciência, e o existir dos seres “vivos”, os quais “vivem” porque participam na vida, segundo o modo peculiar próprio de cada um.
Então é fácil distinguir que se os textos neotestamentários mencionam em muitas ocasiões duas ordens de vida, é porque as vezes se referem a pluralidade do que vive, do que aparece ante nós como vivente, e essa é a “vida mortal”; e em outros casos nomeiam a vida em si mesma, objetiva, como propriedade consubstancial do Pai e do que pertence a sua esfera celeste.
A doutrina do evangelho é muito transparente a este respeito: a vida eterna, a única vida, a possui quem a tem em si mesmo, seja porque é a vida mesma, como se passa com o Pai, ou por doação direta ou derivada do Pai. Neste caso, o receptor possui também a vida em si mesmo, e é também ele a Vida desde o momento em que recebe a vida.
Em síntese, este é o ensinamento evangélico quanto à vida, que pode ser estudada em especial no quarto evangelho, não porque não seja ensinamento comum a todos os evangelistas, senão porque é no evangelho joanico onde aparece uma maior preocupação por proporcionar informação sobre isso.
Segundo explica o evangelho, o Pai tem vida em si mesmo, e é ele o que deu ao Filho o ter vida em si mesmo. Por isso no Filho (na Palavra) está a vida, pois ao Filho o marcou o Pai com seu selo.
Quanto ao Espírito de Deus, que se pousou sobre Jesus para ungi-lo, se pode afirmar que também tem em si mesmo a vida, por ser o Espírito do Pai.
Por último, o Filho dá a vida àqueles que quer, ao que crê nele, ao que como o pão vivo que ele o dá, pois ele é o pão de Deus que dá a vida ao mundo.
Os que “ele quer”, são as “ovelhas” que escutam a voz do Filho, a Palavra, e o seguem (Pastor e Ovelhas). Por isso diz Cristo Jesus: “O que crê em mim ainda que morra viverá”; e agrega para bem esclarecer o que diz: “o que vive e crê em mim, não morrerá jamais”.
As “ovelhas”, são aquelas que mediante a metanoia, primeiro, e o duplo batismo depois, se uniram com o homem essencial, pneumático, e vieram a ser a essência de si mesmos. Pela unção prolongada, sustentada, o Espírito, que começa sendo “presença”, termina por unir-se ao espírito, e este, o espírito do homem, já “voltado” ao Cristo interior, preexistente, universal — e essa é a porta — toma para si a vida que o bom pastor o dá.
Há que sublinhar que não é que o pastor, o Filho, perca a vida quando a dá “como resgate para muitos” — por todas as ovelhas —. A vida do Cristo preexistente emana dele, pois ele é a vida, e não esgota seu caudal quando a dá para liberar do regime de vida mortal aos “muitos” cativos, alguns dos quais o esperam com sua lâmpada acesa e bem reposta no azeite da unção. O alimento de vida eterna que ele dá, não significa míngua de eternidade para o Filho do homem, pois a eternidade não é coisa mensurável para mais ou para menos.
A vida é o “poder” do Filho do homem — assim como a sabedoria é sua glória — e quando a dá para converter em “vivos” aos cativos, a vida que ele dá se acrescenta na vida que tomam as “ovelhas” que com ele se unem na vida, eterna e de todos, posto que só há uma.
Por isso fala Jesus do “resgate”, mas não por sua morte na cruz, senão porque a vida que dá aos muitos é redenção para eles, e ele a recebe nos redimidos.
Esse é o sentido, segundo a vertente oculta, da perícope joanica:
“Dou minha vida, para recebê-la de novo.
Ninguém me a retira, eu a dou voluntariamente.
Tenho poder para dá-la
e poder para recobrá-la de novo”.